Com as eleições municipais chegando, me senti impelido a desmistificar um pouco o assunto função social da propriedade do ponto de vista legal e urbanístico devido às abundantes fake news sobre invasão de propriedade, e quem sabe, esclarecer pelo menos uma alma sequer. Se houver algum erro, agradeço correções. Fontes ao final do textão.
De maneira resumida, para quem não tem paciência de ler tudo:
O direito à propriedade é garantido na Constituição, mas o direito à moradia digna também é. E se a propriedade não cumprir sua função social, ou seja, uso dentro dos parâmetros legais do Plano Diretor e do Zoneamento, os proprietários devem ser notificados para correção. Caso não ajam, pode ocorrer desapropriação. O Município de São Paulo tem uma quantidade enorme de imóveis ociosos dentro dessas características que poderiam atender a pelo menos parte das pessoas em situação de rua ou moradia precária. Tudo isso apenas cumprindo o que diz a lei!
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Agora, de maneira mais detalhada, para quem tiver interesse e paciência:
A primeira noção é a existência do direito à ‘propriedade privada’ como um dos princípios da Ordem Econômica, definida na Constituição Federal (CF) de 1988[i], em seu artigo 170, inciso II. No entanto, o inciso III também estabelece o princípio da ‘função social da propriedade’.
Pode parecer contraditório, mas a propria CF reforça no artigo 5º, inciso XXIII que “a propriedade atenderá a sua função social”. E o que isto significa? O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) estabeleceu no seu art. 39 que:
“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.”
Esta questão é corroborada pelo art. 1228 do Código Civil[ii] (Lei 10.406/2002), em seu inciso §1º:
“O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
O Código Civil acrescenta ainda, no inciso § 4º que:
“O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.”
Estas ideias, que aparecem em todo o nosso arcabouço legal, são ainda mais claras no Plano Diretor[iii] do Município de São Paulo (Lei 16.050/2014), no inciso 2º do art. 5º:
“Função Social da Propriedade Urbana é elemento constitutivo do direito de propriedade e é atendida quando a propriedade cumpre os critérios e graus de exigência de ordenação territorial estabelecidos pela legislação, em especial atendendo aos coeficientes mínimos de utilização determinados nos Quadros 2 e 2A desta lei”
Acrescentam-se ainda, vários conceitos importantes, entre eles a noção de Função Social da Cidade, no inciso 1º do mesmo art.:
“Função Social da Cidade compreende o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, ao acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento socioeconômico e ambiental, incluindo o direito à terra urbana, à moradia digna, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho, ao sossego e ao lazer.”
OK, mas o que tudo isso tem a ver com deixar movimentos sociais invadirem as propriedades? Voltando ao inciso anterior, peço atenção ao trecho “o direito à terra urbana, à moradia digna”. Pois bem, será que estes direitos estão de fato sendo garantidos? Afinal, não precisamos argumentar muito que todo ser humano deveria ter o direito a um local digno para morar.
Pois bem , só na Região Metropolitana de São Paulo, em 2015, o deficit habitacional[iv] era de 639.839 habitações (englobando todos os tipos de déficit). Já a população de rua, em 2019, consistia de 24.344 pessoas[v],[vi]. É bem provável que ambos os números tenham aumentado devido à pandemia[vii].
Mas construir casa e apartamento para tantas pessoas leva tempo. E faltam terrenos na cidade. Não é bem assim. A cidade de São Paulo tem uma quantidade enorme de edifícios abandonados em pleno centro da cidade. Os números das diferentes fontes variam, mas podem chegar a até 40.000[viii] imóveis abandonados, ociosos ou subutilizados. A razão é normalmente por disputas judiciais de herança ou meramente especulação imobiliária, que nada mais é do que “comprar e manter um terreno ou espaço sem uso, aguardando melhorias no entorno que o valorizem e possibilitem a venda futura com lucro”[ix]. O que claramente afronta todos os princípios legais expostos acima. Se esstes imóveis não cumprem sua função, eles podem ser tomados pelo poder público. Aliás, o IPTU devido por muitos deles já é maior do que o valor do próprio imóvel.
A Prefeitura de São Paulo começou a agir através da regulamentação do Decreto 51.920/2014[x] com a notificação dos imóveis ociosos e cobrança do IPTU progressivo. Os proprietários tem um prazo para dar função ao imóvel ou terreno, e caso não o façam, tem o valor do IPTU aumentado. Ao fim de um prazo, o imóvel poderá ser tomado pela prefeitura, com a compensação financeira, caso devida.
Mas a atual gestão municipal infelizmente, deixou de aplicar este instrumento legal de forma adequada, e as notificações têm se reduzido anualmente. Desde 2014, apesar de 1185 noificações, não houve nem uma desapropriação sequer[xi]. E 85% dos imóveis notificados não tomaram nenhuma providência[xii].
Ou seja, fica claro que, apesar dos instrumentos legais existentes, os governos têm sistematicamente ignorado o dever de garantir moradia digna aos seus cidadãos. Fechando os olhos e sendo coniventes com os donos de imóveis subutilizados em clara afronta à Constituição Federal. E com isso, também deixando espaço para o aumento do déficit habitacional e o crescimento das favelas e ocupações em áreas de proteção ambiental. Afinal, todos precisamos de um teto.
Não cabe a mim, aqui, com este texto, apoiar o candidato X ou Y, mas sim esclarecer um assunto que é pouco compreendido e frequentemente leva a boatos infundados. E também fazer com que as pessoas reflitam mais sobre os problemas da cidade embasadas em dados concretos e na legislação vigente. O assunto é amplo e poderia incluir ainda uma série de outras discussões, como a razão de focar no centro para este processo de provisão de moradias. Mas deixarei isto para outra oportunidade.
A pergunta que cada um de nós deveria fazer então, é: O que o meu candidato pensa a respeito disso? Qual a proposta dele para resolver este enorme problema?
Boa reflexão a todos!
[i] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[ii] https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10653373/artigo-1228-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002
[iii] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/2014-07-31_-_lei_16050_-_plano_diretor_estratgico_1428507821.pdf
[iv] http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-brasil
[v] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/assistencia_social/observatorio_social/pesquisas/index.php?p=18626
[vi] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/30/populacao-de-rua-na-cidade-de-sp-chega-a-mais-de-24-mil-pessoas-maior-numero-desde-2009.ghtml
[vii] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/29/numero-de-sem-teto-nas-ruas-aumenta-em-sp-durante-a-pandemia-dizem-servicos-de-atendimento-voluntario-da-cidade.ghtml
[viii] https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/07.079/1932#:~:text=O%20centro%20da%20cidade%20de,um%20grau%20avan%C3%A7ado%20de%20obsolesc%C3%AAncia.
[ix] https://urbe.me/lab/especulacao-imobiliaria/#:~:text=No%20mercado%20de%20im%C3%B3veis%2C%20muito%20se%20fala%20sobre%20especula%C3%A7%C3%A3o%20imobili%C3%A1ria.&text=Comprar%20e%20manter%20um%20terreno,lucro%3A%20isso%20%C3%A9%20especula%C3%A7%C3%A3o%20imobili%C3%A1ria.
[x] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/urbanismo/funcao_social_da_propriedade/
[xi] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/01/cai-numero-de-notificacoes-pela-lei-do-iptu-progressivo-para-desocupacao-de-imoveis-abandonados-em-sp.ghtml
[xii] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/1098-imoveis-ociosos-em-sp-ignoram-alerta-e-ficam-sujeitos-a-iptu-mais-caro.shtml